Publicado originalmente em 4 de novembro de 2020
Um incêndio em 27 de outubro num hospital do estado do Rio de Janeiro resultou na morte de oito pessoas, sendo pelo menos três delas pacientes com COVID-19. Todos tiveram algum tipo de complicação após uma transferência feita às pressas no momento em que o subsolo começou a pegar fogo espalhando uma densa fumaça por vários setores do hospital.
Desorientados pela falta de qualquer plano de emergência, enfermeiros, médicos e outros trabalhadores tiveram que agir de maneira improvisada, chegando a usar uma loja de pneus para realocar temporariamente parte dos pacientes. Uma das vítimas fatais foi Núbia Rodrigues, de 42 anos. Ela era radiologista e tinha sido internada há poucos dias, depois de já ter passado por outras duas unidades públicas de saúde. Carregada num lençol por seus colegas de profissão, ela seria levada para outra unidade, mas morreu no caminho dentro de uma ambulância. Dos 44 pacientes que foram transferidos no dia do incêndio, 21 ainda estão internados.
O fato de um incêndio ter ocorrido no Hospital Federal de Bonsucesso (HFB), o maior complexo hospitalar da rede pública do estado do Rio, expõe o caráter criminoso das condições precárias do sistema público de saúde do Brasil.
No início da pandemia, esse mesmo hospital foi cogitado para ser referência no atendimento a pacientes com COVID-19. A unidade, que faz em média 1.300 internações por mês, seria adaptada com cerca de 200 novos leitos para COVID-19, mas o plano não foi concretizado por falta de equipamentos e profissionais.
O então ministro da Saúde, Nelson Teich – um dos três que já ocuparam o cargo só neste ano –, fez uma visita ao hospital e constatou a subutilização da unidade por falta de insumos básicos e respiradores. Na ocasião, os trabalhadores fizeram um protesto exigindo a compra de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) e condições dignas de trabalho. Depois dessa visita, o hospital foi descartado como referência no tratamento da COVID-19 e permaneceu sob condições precárias.
Segundo levantamento da Associação Contas Abertas, o orçamento da unidade caiu quase 40% desde 2010, passando de R$ 218 milhões (em valor corrigido pela inflação) para R$ 131 milhões por ano. A deterioração do hospital, portanto, era previsível. Uma vistoria feita em 2019 apontou falhas graves no sistema de prevenção a incêndio e “alto risco de explosão” por conta do superaquecimento de dois transformadores.
A negligência a esse aviso, assim como o descaso com as demandas colocadas pelos trabalhadores, é parte de uma política deliberada dos governos capitalistas. Esse já é o quarto episódio de incêndio em hospital no Rio de Janeiro desde setembro do ano passado. E, embora os casos do Rio sejam particularmente graves por conta das mortes, o problema se estende a todos os estados. Desde o início de 2020, o Instituto Sprinkler Brasil contabilizou 45 incêndios em unidades de saúde públicas e privadas de todo o país, um aumento de 96% em comparação ao mesmo período do ano passado. E estima-se que esse número seja maior, já que os incêndios rapidamente controlados muitas vezes não são notificados.
A precariedade da estrutura do sistema público de saúde, do qual depende 70% da população, adquire atualmente um efeito ainda mais trágico devido à pandemia do coronavírus. O “combate” à pandemia foi marcado pela instalação de locais provisórios e precários para atendimento aos casos de COVID-19, que serviram ao desvio sistemático de recursos públicos, enquanto os hospitais pré-existentes permaneceram abandonados.
Em tais condições e sob a política de imunidade de rebanho promovida pelo presidente Jair Bolsonaro e pela classe dominante como um todo, o Brasil já acumula 160 mil mortes por coronavírus e mais de 5,5 milhões de casos. Nesta semana, a taxa de transmissão do coronavírus no Brasil voltou a subir, segundo monitoramento do Imperial College (Reino Unido). O relatório divulgado na última segunda-feira mostra que o índice aumentou para 1,01 (em agosto, havia caído pela primeira vez para valores abaixo de 1).
Mesmo diante do elevado número de casos e do aumento da taxa de transmissão, a já insuficiente estrutura hospitalar está sendo desmontada. No estado do Pará, cerca de 300 trabalhadores foram demitidos no mês passado após o fechamento do Hospital Regional de Castanhal. Os trabalhadores responderam com um protesto no dia 15 de outubro, e novamente no dia 28, desta vez por não terem sequer recebido o pagamento de salário e o valor da rescisão de contratos.
Além disso, grande parte dos leitos provisórios dos diferentes estados, incluindo os hospitais de campanha que haviam sido montados em estádios de futebol, foram desativados, sobrecarregando as demais unidades de saúde.
Após o incêndio no Hospital Federal de Bonsucesso, a administração também anunciou que o hospital seria totalmente fechado e que daria férias coletivas aos funcionários. Os trabalhadores do hospital responderam com um protesto, defendendo que ao menos os setores não atingidos pelo incêndio continuassem funcionando. Depois disso, a administração voltou atrás, decidindo reabrir parcialmente o hospital.
Cada um desses casos demonstra que a defesa das condições básicas de saúde e a luta contra a desativação de leitos, corte de recursos, e o estado de deterioração dos hospitais públicos brasileiros, que estão literalmente queimando, só podem ser garantidas pela ação independente da classe trabalhadora. As contaminações e mortes em massa pela pandemia de COVID-19 expuseram a condição preexistente de total incompatibilidade entre o capitalismo e as necessidades sociais fundamentais da classe trabalhadora, incluindo saúde gratuita de qualidade.