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Perspectivas

O 19 de junho e a Segunda Revolução Americana

Publicado originalmente em 20 de junho de 2021

Na última quinta-feira (17), o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, assinou uma lei estabelecendo o dia 19 de junho como o feriado nacional para comemorar o fim da escravidão nos Estados Unidos. A lei, aprovada com enorme apoio de ambos os partidos capitalistas, entrou em vigor imediatamente. O feriado foi celebrado oficialmente pela primeira vez na sexta-feira, antes do fim de semana.

A emancipação final dos escravos, o culminar da Guerra Civil – o que os historiadores chamaram apropriadamente de Segunda Revolução Americana – custou a vida de mais de 350 mil soldados da União. A destruição da oligarquia escravocrata do Sul dos EUA foi um evento de imensa importância progressiva, não apenas para os americanos, mas para a história mundial.

Celebração do Dia da Emancipação em Richmond, no estado da Virgínia, 1905 (Crédito: Wikipedia/Public Domain)

No entanto, em meio aos intermináveis comentários da mídia sobre a comemoração oficial do feriado, não há um exame histórico sério, nem da emancipação dos escravos em 1865, nem das suas implicações revolucionárias para o presente.

O feriado do 19 de junho comemora essa data em 1865, quando os negros escravizados no estado do Texas souberam que estavam livres. Isso ocorreu mais de dois meses após a rendição por Robert E. Lee das forças confederadas a Ulysses S. Grant em Appomattox, no distante estado da Virgínia, e o assassinato de Abraham Lincoln cinco dias depois pelo simpatizante sulista racista, John Wilkes Booth, em Washington D.C. No sentido legal, a liberdade dos escravos havia chegado mais cedo ainda, através da Proclamação de Emancipação, que libertou os escravos em territórios controlados pelos rebeldes e entrou em vigor em 1º de janeiro de 1863. A Décima Terceira Emenda à Constituição dos EUA, aprovada pelo congresso em 31 de janeiro de 1865 e ratificada pelos estados em dezembro, aboliu a escravidão em todos os lugares da união dos EUA.

Os senhores de escravos tentaram esconder tudo isso dos escravos. Porém, na manhã de 19 de junho de 1865, o Major-General Gordon Granger da União chegou a Galveston, no estado do Texas, para assumir o comando de mais de 2 mil soldados da União, com o objetivo de impor a emancipação da população escravizada do Texas e assegurar a transferência de poder pacífica dos escravocratas para o governo federal. Com seu anúncio da Ordem Geral nº 3, Granger dissolveu a escravidão no último estado confederado onde ela permanecia em vigor.

A ordem dizia:

Informamos ao povo do Texas que, de acordo com uma proclamação do Executivo dos Estados Unidos, todos os escravos estão livres. Isso envolve a igualdade absoluta de direitos pessoais e direitos de propriedade entre ex-mestres e escravos, e a relação até então existente entre eles se torna aquela entre empregador e trabalhador contratado.

Com essas palavras, o general da União cristalizou o conteúdo revolucionário da Guerra Civil – a destruição de toda uma ordem social e a libertação dos escravos – mas também a dura realidade da nova ordem. Quatro milhões de trabalhadores não eram mais propriedade de outros, mas eles também não possuíam propriedade. Agora eles eram livres para vender a sua força de trabalho, talvez aos seus antigos senhores.

Os ex-escravos em Galveston comemoraram o anúncio de Granger apesar de suas limitações. O fim da escravidão sob a mira da baioneta da União foi um enorme avanço, e os escravos sabiam disso. Esses "homens livres", como foram chamados, não zombaram da Guerra Civil ou de Lincoln como fazem os defensores contemporâneos da política racialista. Em 19 de junho de 1866, um ano após o anúncio, os ex-escravos organizaram a primeira comemoração, que se tornou a celebração anual do "Dia do Júbilo", agora comumente conhecido como 19 de junho. Mais tarde, o feriado saiu do leste rural do Texas com os filhos e filhas dos escravos, conforme iam do campo para a cidade, e da parceria rural para o trabalho assalariado.

Nenhuma dessas questões é sequer introduzida nos comentários sobre a importância do feriado. Em um clima político obcecado pela identidade racial, a ocasião do 19 de junho foi usurpada para promover as interpretações racialistas do feriado.

A colunista do New York Times, Jamelle Bouie, resumiu as concepções que estão sendo promovidas em torno do 19 de junho em uma coluna publicada há um ano, "Por que o 19 de junho é importante". Segundo Bouie, "foram os negros americanos que cumpriram a promessa de Lincoln de 'um novo nascimento da liberdade'". Ela escreveu: "Nem Abraham Lincoln nem o Partido Republicano libertaram os escravos... Quem libertou os escravos? Os escravos libertaram os escravos". O artigo de Bouie tinha como objetivo promover a afirmação de Nikole Hannah-Jones, feita em seu principal artigo sobre o desacreditado Projeto 1619, de que os negros americanos "lutaram sozinhos" em sua luta pela emancipação e por direitos civis.

Um comentário mais recente sobre o mesmo tema foi publicado na sexta-feira no Atlantic, em um artigo de Daina Ramey Berry, membro do departamento de história na Universidade do Texas na cidade de Austin, intitulado "A verdade sobre a liberdade dos negros". Respondendo à pergunta: "Qual é o significado do 19 de junho?”, Berry responde diminuindo a importância da Proclamação de Emancipação e da Décima Terceira Emenda. Ela argumenta que os negros "autolibertados" "reivindicaram continuamente sua liberdade, em cada momento histórico, sempre precedendo e precipitando as ações de governos, instituições e corporações".

A afirmação de que os escravos "se libertaram" torna a história da Guerra Civil incompreensível. Se os escravos podiam simplesmente se libertar, por que não fizeram isso em 1750, ao invés de 1863-1865? Por que a Guerra Civil teria sido necessária? Será que Berry e Bouie acreditam no velho mito da "Causa Perdida", no qual a Guerra Civil foi uma luta equivocada, travada entre "irmãos", com a qual a escravidão estava apenas tangencialmente relacionada? Além disso, se os escravos se libertaram, por que foi necessário que o General Granger entrasse em Galveston com um exército, cerca de dois meses após Appomattox, para "trazer as notícias", como Bouie coloca absurdamente?

Afirmar que os escravos se libertaram diminui os horrores do próprio sistema da escravatura, que foi sustentado com um nível chocante de violência. A abolição desse sistema exigiu uma guerra civil, custando centenas de milhares de vidas, até que "cada gota de sangue arrancada pelo chicote seja paga por outra retirada pela espada", conforme Lincoln disse em seu segundo discurso de posse.

Na realidade, a derrota da classe escravocrata mais rica e poderosa do planeta era inconcebível sem a vitória de Lincoln à frente de um partido político que chamava pela destruição da escravatura. A vitória de Lincoln, e a ameaça que ela representava para a escravidão, foi de fato a razão pela qual os estados do sul se separaram do norte, conforme foi explicitado nas resoluções de secessão e na constituição confederada. Ainda mais crucial, a vitória da União teria sido inconcebível sem o apoio das massas no Norte, a resistência do exército da União, a resistência dos escravos no Sul, e até mesmo a oposição à secessão dos brancos sem escravos, conforme demonstrado pela historiadora Victoria Bynum e outros. Em adição, foi a proclamação de Lincoln, como Marx explicou na época, que deu ao conflito um caráter social revolucionário definido.

Assim como aqueles que viveram durante a Guerra Civil, vivemos em uma época de conflito irreconciliável. Em um ano, trabalhadores americanos morreram de COVID-19 em quantidade semelhante ao número dos soldados da União e da Confederação mortos em quatro anos de sangrento conflito. Enquanto isso, os mercados de ações continuam a bater recordes e a riqueza dos ricos cresce em disparada.

A classe dominante americana, aterrorizada com a explosão que ela está provocando, teme o passado quase tanto quanto o presente. O propósito essencial da atual campanha para reescrever a história americana é substituir a dinâmica de classe e o conflito de classes – o sistema escravo era, em última análise, um sistema de exploração de mão-de-obra – por uma interpretação racial que não permite aos "brancos" terem sido nada além de opressores dos "negros". Nessa "nova narrativa", o papel de Lincoln, e dos soldados brancos da União, deve ser rebaixado ou descartado.

A emancipação dos escravos na Guerra Civil, assim como a Revolução Americana de 1776, merece ser celebrada. Porém, os trabalhadores conscientes de classe nos Estados Unidos, e em todo o mundo, não devem permitir que a importância revolucionária da emancipação de quatro milhões de escravos seja usurpada em defesa do capitalismo.

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