Publicado originalmente em 10 de maio de 2022
Setenta e sete anos após a rendição incondicional da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial, o chanceler alemão, Olaf Scholz, (Social-Democratas) usou o aniversário para justificar um rearmamento sem precedentes do exército alemão (Bundeswehr) e uma expansão maciça da guerra por procuração contra a Rússia. Com esse fim, ele banalizou e relativizou os crimes do regime nazista de forma inacreditável e recorreu às piores tradições da política alemã de grande potência.
Os chanceleres alemães raramente se dirigem à população em pronunciamentos televisivos sobre questões atuais. Merkel o fez apenas uma vez durante seus 16 anos de mandato, no auge da pandemia do coronavírus. Scholz agora usa desse meio no dia da libertação do fascismo para propagandear uma guinada agressiva à guerra contra a Rússia e anunciar mais entregas de armas à Ucrânia.
Scholz acusou o presidente russo Vladimir Putin de querer “subjugar a Ucrânia para destruir sua cultura e identidade” com seu “ataque bárbaro”. Dessa forma, segundo Scholz, Putin trouxe a “guerra, genocídio e tirania” de volta à Europa. “Nós defendemos a lei e a liberdade – ao lado dos atacados. Apoiamos a Ucrânia na luta contra o agressor. Não fazer isso significaria se render à pura violência – e encorajar o agressor”.
A Alemanha, portanto, não aceitará “uma paz ditada pela Rússia”, proclamou Scholz, admitindo assim indiretamente que ele se vê como uma das partes na guerra. Em consonância com isso, ele anunciou que forneceria à Ucrânia mais armamento pesado para derrotar a Rússia militarmente.
A decisão histórica de deixar tanques alemães avançarem contra a Rússia mais uma vez não é impulsionada pela “segurança e paz” e muito menos pela proteção da população ucraniana. Ao invés disso, a Alemanha e as outras potências da OTAN provocaram sistematicamente a reacionária invasão russa para possibilitar que travassem uma guerra por procuração contra a Rússia às custas da população ucraniana.
Já em 2014, o governo alemão apoiou o golpe contra o presidente ucraniano Viktor Yanukovych para colocar o país em sua própria esfera de influência e contra a Rússia. O golpe se apoiou em forças paramilitares de extrema-direita, como o Setor Direito, que ganhariam cada vez mais influência na política nos anos seguintes.
Nos meses que antecederam a invasão russa, o governo ucraniano, com o apoio maciço dos EUA e da Alemanha, preparou-se para ocupar militarmente as áreas mantidas sob controle dos separatistas pró-russos no leste do país. Uma guerra contra a Rússia na Crimeia também foi planejada.
O regime de Putin reagiu a tal agressão com uma onda de nacionalismo tóxico e seu ataque reacionário à Ucrânia. A Alemanha usou isso como pretexto para implementar o maior programa de rearmamento desde a Segunda Guerra Mundial. Todas as restrições impostas à Alemanha após a guerra mundial serão removidas e a Bundeswehr será reconstruída como o maior exército europeu.
Quando Scholz anuncia que a Alemanha não aceitará uma “paz ditada” e que está lutando pela derrota militar da Rússia, o desdobramento lógico é um confronto direto com a Rússia, levando a uma guerra mundial nuclear. Ele mencionou brevemente a preocupação com esse risco logo antes de declarar com desprezo: “O medo não deve nos paralisar”.
O governo alemão já entregou à Ucrânia tanques de guerra dos estoques da antiga Alemanha Oriental e anunciou mais entregas de armas pesadas. Isso inclui tanques antiaéreos e canhões howitzer autopropulsionados capazes de provocar enorme destruição. A Alemanha e a OTAN estão prontas para deixar a Ucrânia em ruínas a fim de derrotar a Rússia.
Como antes na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, isso acompanha uma propaganda de guerra ensurdecedora e o chauvinismo e racismo antirusso. “Todos os russos são nossos inimigos agora”, anunciou o Frankfurter Allgemeine Zeitung, por exemplo, na manchete de uma entrevista com o embaixador ucraniano Andrij Melnyk, um seguidor declarado do colaborador nazista Stepan Bandera.
Com seu armamento pesado, a Alemanha está equipando o Batalhão Azov e outras unidades neonazistas. Esses grupos são os descendentes políticos da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) de Bandera, que foi responsável pelo assassinato de milhares de judeus ucranianos.
O discurso de Scholz sobre “liberdade e segurança na Europa” é tão verossímil quanto o discurso de Hitler ao povo alemão em 22 de junho de 1941, o dia da invasão alemã da União Soviética. Hitler também justificou sua guerra com base nos ataques da União Soviética à Finlândia e à Romênia e declarou: “Mas, se as circunstâncias me obrigaram a permanecer em silêncio uma e outra vez, chegou o momento em que permanecer passivo não seria somente um pecado de omissão, mas um crime contra o povo alemão, sim, contra toda a Europa”.
No discurso oficial televisionado de Scholz no dia da rendição incondicional, os termos “Holocausto”, no qual 6 milhões de judeus foram exterminados em regime industrial, e “guerra de aniquilação”, que foi planejada em detalhes pela Alemanha nazista, não foram usados. No início de seu discurso, ele apenas proferiu algumas frases gerais sobre as 60 milhões de vítimas da guerra e os milhões mortos no front e nos campos de concentração.
O restante do discurso foi dedicado à guerra russa contra a Ucrânia. Apenas dois dias antes, em um discurso em Hamburgo, Scholz usou os termos “guerra de aniquilação” e “ruptura com a civilização”, anteriormente reservados para descrever os crimes sem precedentes da Wehrmacht. Scholz alegou que a Rússia estava travando uma “guerra de extermínio” e que estava “rompendo com a civilização”.
Essa é uma falsificação total da história que trivializa e relativiza os crimes do imperialismo alemão. A invasão russa da Ucrânia é politicamente reacionária e apela ao nacionalismo russo, mas não pode ser comparada à guerra de aniquilação da Wehrmacht, muito menos ao Holocausto.
As forças empregadas pelo regime de Putin contra a Ucrânia são minúsculas em comparação com a força da invasão lançada por Hitler contra a Rússia em 1941. O historiador Stephen G. Fritz descreveu a invasão da seguinte forma:
Empregando mais de 3 milhões de homens, 3.600 tanques, 600.000 veículos motorizados (assim como 625.000 cavalos), 7.000 peças de artilharia e 2.500 aeronaves (um número que na verdade era menor do que o utilizado durante a invasão da França), os alemães lançaram a maior operação militar da história. [Ostkrieg: Guerra de Extermínio de Hitler no Leste, em tradução livre].
A “Operação Barbarossa” da Alemanha, continuou Fritz:
não só foi a campanha militar mais massiva da história, como também desencadeou uma campanha sem precedentes de violência genocida, da qual o Holocausto continua sendo o exemplo mais conhecido. Este judeocídio, porém, não foi um ato isolado de assassinato; ao contrário, fez parte de um plano deliberado e abrangente de exploração, um esquema utópico de reorganização racial e engenharia demográfica de vastas proporções.
Para um chanceler alemão, totalmente familiarizado com essa história, comparar a invasão da Ucrânia com a guerra de extermínio nazista é politicamente obsceno.
Além disso, a campanha russa não chega nem perto da brutalidade das guerras lideradas pelos EUA e apoiadas pela Alemanha no Iraque, Afeganistão e Líbia, em que países inteiros foram arrasados e milhões de pessoas foram mortas. Mesmo o New York Times teve que admitir isso, citando, em um artigo de 3 de maio, oficiais americanos dizendo que as forças russas demonstraram “notável comedimento” na guerra.
O discurso do chanceler alemão é parte de uma falsificação generalizada da história. O governo do Partido Social-Democrata, Partido de Esquerda e Partido Verde no estado de Berlim proibiu a utilização de bandeiras soviéticas nos memoriais do Exército Vermelho, enquanto permite que o grupo neonazista “A Terceira Via” se manifeste no Memorial do Holocausto para a Ucrânia.
O apoio do governo alemão ao golpe de 2014 e a proclamação do “fim da restrição militar da Alemanha” foi acompanhado da banalização dos crimes nazistas. Em fevereiro de 2014, surgiu um artigo no Der Spiegel citando a afirmação do falecido apologista nazista, Ernst Nolte, de que “o peso da participação dos poloneses e ingleses [na deflagração da Segunda Guerra Mundial] deveria ser levado mais em conta do que de constume”.
No mesmo artigo, Jörg Baberowski, um professor da Universidade de Humboldt, declarou: “Nolte foi injustiçado. Historicamente falando, ele estava certo”. Como uma das razões, ele declarou: “Hitler não era um psicopata, e ele não era cruel. Ele não gostava de falar à mesa sobre o extermínio dos judeus”. Além disso, ele comparou o Holocausto aos confrontos na guerra civil russa, comentando: “Essencialmente, era a mesma coisa: assassinato industrial”.
Baberowski foi celebrado por representantes de todos os partidos. Hoje, suas posições revanchistas são a política oficial do governo. A tentativa de Scholz de usar o slogan “Guerra nunca mais!” para justificar sua política beligerante e falsificação da história é particularmente desprezível. Dar o nosso máximo para contribuir com a “liberdade e segurança”, afirmou Scholz, é o significado contemporâneo de “Nunca mais!”.
O slogan “Nunca mais!” já ganhara popularidade após a Primeira Guerra Mundial e foi inesquecivelmente retratado pela artista comunista Käthe Kollwitz. Após os piores crimes da história humana, que o imperialismo alemão desencadeou na Segunda Guerra Mundial, a sentença ancorou-se profundamente na consciência das massas na Alemanha e em todo o mundo.
Scholz e o governo alemão não apagarão essa convicção profunda distorcendo esse slogan com seu belicismo. Pelo contrário, o caráter da política de guerra da Alemanha está se tornando cada vez mais aparente. Ela encontra sua principal oposição no povo trabalhador.
Agora é crucial transformar essa oposição em resistência consciente e armá-la com uma perspectiva internacionalista e socialista. Somente a intervenção ativa dos trabalhadores russos e ucranianos, juntamente com os trabalhadores de todos os países, pode deter a insanidade da guerra.