Com o anúncio, no início de novembro, do envio de tropas para as alfândegas e portos sob o pretexto de combater o tráfico de drogas, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) deu um passo decisivo na militarização do Estado brasileiro, que se acelerou desde seus dois primeiros mandatos, de 2002 a 2010.
O governo anunciou a medida, formalmente chamada de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), depois de negar categoricamente que recorreria a ela por mais de 10 meses, desde que assumiu em 1º de janeiro. De acordo com o Ministério da Justiça, a operação está concentrada nos portos e aeroportos que servem as duas maiores cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo, bem como nas “tríplices fronteiras” com Uruguai, Argentina e Paraguai, no sudoeste do país. A GLO permite que as três Forças militares assumam o controle das operações da Receita Federal, da Polícia Federal e de outras agências correlatas. Seu objetivo declarado é “sufocar” as rotas de tráfico de drogas que entram no país pelas fronteiras terrestres a oeste e saem para cidades europeias e norte-americanas pelos portos do leste.
O pretexto imediato para o decreto foi uma série de ataques à infraestrutura de transporte na zona oeste do Rio de Janeiro, dominada pela pobreza e controlada pelas milícias – máfias formadas por policiais de folga e aposentados. Na tarde de 23 de outubro, uma segunda-feira, homens não identificados começaram a incendiar ônibus nas principais vias da zona oeste, paralisando a cidade, provocando o cancelamento de aulas e o fechamento do comércio pelos dois dias seguintes. A ação teria sido uma retaliação pelo assassinato do chefe de uma milícia pela polícia.
O episódio de violência no Rio de Janeiro provocou imediatamente uma ofensiva política da oposição de extrema direita ligada ao ex-presidente fascistoide Jair Bolsonaro, que acusou o governo do PT de ser conivente com o crime. Apenas uma semana depois, o governo anunciou, de forma apressada, o início da GLO sob uma histeria de “combate ao crime”. “É uma ação necessária para enfrentar e sufocar o financiamento do crime organizado, que cresceu nos últimos anos pela ausência de ações sérias por parte de quem governou o país nos últimos anos”, disse a presidente do PT, Gleisi Hoffman, em seu X/Twitter.
A decisão de decretar a GLO provocou um alvoroço na mídia, dadas as promessas de campanha do PT nas eleições de 2022 de que trabalharia para reverter o avanço da presença dos militares no governo intensificada durante o governo do ex-presidente Bolsonaro. Bolsonaro nomeou milhares de militares para todos os níveis do governo federal, incluindo seu ministério, o que culminou no apoio das Forças Armadas a suas alegações de fraude eleitoral, com os militares desempenhando um papel significativo no planejamento e execução do assalto fascista de 8 de janeiro em Brasília.
Em meio aos eventos críticos da tentativa de golpe de 8 de janeiro, Lula rejeitou explicitamente as sugestões do comando militar e de seu Ministro da Defesa de que ele deveria decretar uma GLO para isolar a capital. Mais tarde, ele explicou que, uma vez iniciada a operação, “Lula deixa de ser o governo para que algum general possa assumir o governo”.
Apenas uma semana antes do decreto, Lula havia declarado que 'enquanto eu for presidente, não tem GLO'. Buscando justificar o giro repentino do governo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, ex-membro do maoísta Partido Comunista do Brasil (PCdoB), declarou defensivamente que a medida não transfere nenhum poder para os militares, já que não haveria nenhuma intervenção em autoridade estadual ou municipal, como já aconteceu em outros decretos de GLO.
Mas, por mais que o governo do PT tente negar desesperadamente, o fato é que essa é outra concessão fundamental aos militares golpistas que só pode levar à direção apontada por Lula em janeiro: o crescente cerco das Forças Armadas ao poder político.
Até aquele momento, o governo havia resistido ao uso das GLOs devido à sua associação, na opinião pública, com a violência e a repressão patrocinadas pelo Estado contra a classe trabalhadora do país, especialmente os setores pobres que vivem nas favelas. As GLOs têm sido cada vez mais usadas por sucessivos presidentes desde a queda da ditadura militar apoiada pelos EUA em 1985, ganhando atenção especial após a primeira eleição de Lula e do PT em 2002. Em seu segundo mandato, de 2006 a 2010, Lula intensificou o uso de GLOs em favelas densamente povoadas do Rio de Janeiro.
A realização de eventos esportivos internacionais no Rio de Janeiro, como os Jogos Pan-Americanos de 2007, a final da Copa do Mundo da FIFA de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, foi um pretexto para o PT enviar tropas equipadas para o combate para substituir a polícia nas favelas. Tendo passado por seu batismo de fogo na criminosa intervenção patrocinada pela ONU no Haiti, os militares não conseguiram sufocar os traficantes de drogas, mas infligiram abusos generalizados contra a população.
Em 2013, a ex-presidente Dilma Rousseff, do PT, usou uma GLO para fechar a área portuária do Rio de Janeiro e encerrar as manifestações de petroleiros que se opunham à privatização dos campos de petróleo. Após o impeachment de Dilma em 2016, o presidente interino Michel Temer decretou uma GLO e depois uma intervenção federal sem precedentes no Rio de Janeiro que, sob os mesmos pretextos de 'sufocar o crime', colocaram a segurança do estado nas mãos dos militares por quase um ano.
Cada uma dessas ações militares, decretadas com alarde, resultou em violência duradoura contra a classe trabalhadora e produziu os principais agentes da conspiração fascista no
Brasil. O Ministro da Defesa e depois companheiro de chapa de Bolsonaro, general Walter Braga Netto, por exemplo, foi o comandante da intervenção federal no Rio durante o governo Temer.
A decisão de Lula de decretar uma nova GLO é ainda mais significativa diante da recente explosão de um conflito entre os principais órgãos civis de segurança do país, a Polícia Federal (PF) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Em 20 de outubro, agentes da PF realizaram buscas na sede da Abin e prenderam dois de seus agentes, acusados de coordenar o uso ilegal de um software espião para monitorar mais de 33.000 pessoas. Entre elas estão ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), políticos da oposição e jornalistas. A mesma operação fez buscas na sede brasileira da Cognyte, a empresa israelense que vende o software de espionagem, conhecido com “First Mile”, revelando informações sobre sua aquisição secreta pelo Exército durante a intervenção federal no Rio, comandada pelo general Braga Netto. Os relatos iniciais na imprensa também dão conta da descoberta de um esquema de invasão em massa de computadores e telefones celulares.
Representantes da Abin reclamaram extraoficialmente que a PF havia excedido sua autoridade ao invadir os escritórios da agência e que o objetivo da operação seria dar um espetáculo em meio a acirradas disputas sobre quem deveria ser responsável pela segurança presidencial depois que o governo do PT a transferiu da Abin para a PF.
Os confrontos abertos no Brasil entre os diferentes ramos do aparato repressivo expressam seu crescente controle sobre o Estado. Sob o novo governo do PT, a classe dominante brasileira está tentando resolver suas disputas internas pelas costas da população e com o uso de medidas cada vez mais autoritárias – principalmente por meio da investigação sigilosa dos planos de golpe de Bolsonaro, liderada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.
O decreto de GLO de Lula mais uma vez desmente todas as promessas anteriores sobre o retorno dos militares estritamente ao seu papel na “defesa nacional”. Unidades e comandantes militares designados para policiar os portos e as fronteiras terão primazia sobre outras agências federais independentes, incluindo a PF, saudada por Lula como uma agência “neutra”, livre da influência de Bolsonaro.
Esses desenvolvimentos seguem uma lógica objetiva e inexorável. Como o World Socialist Web Site alertou, a preocupação central da nova administração do PT, especialmente em suas relações com os militares, é evitar que a oposição massiva a Bolsonaro e a seu giro autoritário transforme-se em uma oposição ao capitalismo brasileiro como um todo. Incapaz de fazer qualquer apelo social à classe trabalhadora, o governo Lula, em vez disso, se volta cada vez mais abertamente para o apoio da direita e do aparato repressivo, acima de tudo dos militares.