As últimas semanas foram marcadas por desenvolvimentos importantes no caso contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e os acusados de liderar a tentativa de golpe que culminou na invasão das sedes do poder em Brasília em 8 de janeiro de 2023.
O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou na terça-feira a fase de oitiva de testemunhas. Na próxima semana, dará início ao interrogatório dos réus do “núcleo central” do processo, que envolve o ex-presidente e sete aliados, quase todos militares do alto-escalão.
Os depoimentos dos ex-comandantes do Exército, General Marco Antônio Freire Gomes, e da Força Aérea, Tenente-Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, tiveram reverberações profundas na crise de todo o sistema político brasileiro.
Diante do tribunal, Freire Gomes tentou atenuar o significado das reuniões preparatórias para um golpe de Estado em que participou ao lado dos demais comandantes militares. As reuniões foram convocadas pelo então ministro da Defesa, General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022. O foco da discussão foi o documento que ficou conhecido como “minuta do golpe”, um decreto para impedir a posse do presidente eleito e instaurar uma ditadura no país.
Justificando a apresentação de tal documento aos comandantes militares pelo Gen. Oliveira – seu antecessor imediato no comando do Exército – Gomes alegou: “Talvez ele tenha nos apresentado por questão de consideração... Estava nos dando conhecimento de que iria começar esses estudos”. E complementou dizendo que todos seus “considerandos” eram “embasados em aspectos jurídicos, na Constituição, por isso não nos chamou atenção”.
O Gen. Freire Gomes se esquivou das alegações de que ele teria ameaçado prender Bolsonaro se o ex-presidente seguisse sua empreitada golpista: 'Eu alertei que se ele saísse dos aspectos jurídicos não só não contaria com nosso apoio como poderia responder juridicamente. Ele concordou e o assunto ficou por isso”.
Além de blindar Bolsonaro, o Gen. Freire Gomes eximiu o ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier, acusado de ter apoiado determinadamente e colocado suas tropas de prontidão para o golpe. “Ele apenas demonstrou, vamos dizer assim, o respeito ao comandante em chefe das Forças Armadas”, afirmou Gomes.
As falas do ex-comandante do Exército provocaram uma reação enérgica do ministro Alexandre de Moraes. “Comandante, ou o senhor falseou a verdade na polícia ou está falseando a verdade aqui”, disse o juiz em referência ao depoimento anterior de Gomes à Polícia Federal. Ele se recusou a mudar sua última versão.
O ex-comandante da Força Aérea, que depôs ao Supremo Tribunal na sequência, declarou assertivamente que “os três chefes das Forças Armadas e o então presidente, Jair Bolsonaro (PL), se reuniram e trataram de hipóteses golpistas, não apenas possibilidades de uso das Forças para garantir a paz social até a transição”.
Baptista Júnior também declarou que as reuniões entre o ex-presidente e os comandantes militares discutiram a prisão de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e que “o chefe da Marinha colocou tropas à disposição da trama”. Contrariando o depoimento do Gen. Freire Gomes, ele atestou que seu colega, “com muita tranquilidade, com muita calma”, teria ameaçado prender Bolsonaro.
Independentemente das tentativas de correção do ex-comandante da Força Aérea, o depoimento do Gen. Freire Gomes foi um balde de água fria sobre o discurso oficial do establishment brasileiro em relação à tentativa de golpe, que afirma que os militares “salvaram a democracia” no Brasil.
Esta narrativa é promovida tanto nos relatório da Polícia Federal e na denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR), que embasam o julgamento do STF, como na mídia e nas declarações do próprio governo. Lideradas pela suposta ação heroica do Gen. Freire Gomes, as Forças Armadas teriam ousado dizer “não” ao golpe.
O que as provas demonstram contundentemente e que foi escancarado pelo depoimento de Freire Gomes é, na realidade, que as Forças Armadas seguiram a conspiração do golpe e seu apoio era uma questão em aberto.
A falsa narrativa sobre os militares “salvadores da democracia” é a expressão máxima das esperanças da classe dominante do Brasil de resolver a maior crise de sua história por meio de manobras burocráticas e puramente judiciais. Essas pretensões falidas estão explodindo frente às mesmas contradições que levaram à tentativa de golpe.
Há sinais de insatisfação crescente entre os militares com o desenvolvimento do caso no STF e a situação política geral no país. Descrevendo a reação de figuras no alto-escalão do Exército ao depoimento do ex-comandante, a Veja citou a fala anônimas de um general: “Não é natural ver um comandante do Exército, uma figura tão respeitada, tomando uma enquadrada de um ministro do STF”.
Ao mesmo tempo em que o STF encerrava a fase de oitivas do processo, a Polícia Federal deflagrou uma operação que revelou a existência de uma organização paramilitar autodenominada “Comando de Caça Comunistas, Corruptos e Criminosos”, ou Comando C4, que executava assassinatos encomendados.
O grupo era formado por militares da ativa e da reserva e atuava com uma fachada legal de “empresa de segurança privada”. Segundo a PF, o grupo tinha uma tabela de preços fixos para a execução de autoridades, incluindo deputados, senadores e ministros do STF. O ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, era um dos nomes monitorados pela organização.
Um dos líderes do Comando C4 presos pela PF, o coronel reformado Etevaldo Caçadini de Vargas, era também responsável pelo canal “Frente Ampla Patriótica” no YouTube, que promoveu o 8 de Janeiro e ataques aos líderes militares que recuaram do golpe. O coronel foi processado na Justiça Militar em 2024, sob a alegação de que seus vídeos “disseminavam ideias golpistas que ofendiam e difamavam as Forças Armadas”.
Comando C4 é uma referência direta ao Comando de Caça aos Comunitas (CCC), uma organização armada fascista formado pouco antes do golpe militar de 1964. Operando nos moldes clássicos de um esquadrão de choque fascista, o CCC promovia ações terroristas contra ativistas e eventos políticos de esquerda, sobretudo nos anos iniciais do regime militar. Com a consolidação da ditadura, seus membros – que tinham vínculos informais com os militares desde o princípio – foram diretamente incorporados ao aparato de repressão e tortura.
A emergência de uma organização paramilitar fascista como o Comando C4, diretamente vinculada às forças que serviram de base a Bolsonaro e permanecem vivas no aparato de Estado, expõe os graves perigos contidos na situação política atual.
O acirramento da crise internacional, marcada pelo espectro da guerra mundial, é um fator determinante no desenrolar explosivo da situação política brasileira, particularmente, o impacto da erupção violenta do imperialismo americano.
Nas últimas semanas, o governo dos EUA escalou significativamente sua ofensiva contra as instituições de Estado brasileiras.
No final de maio, o governo brasileiro recebeu uma carta oficial do Departamento de Estado americano desafiando as ordens do STF dirigidas a redes sociais baseadas nos EUA, como a Rumble. Na sequência, o secretário de Estado americano Marco Rubio declarou publicamente que há “grandes possibilidades” de o governo Trump impor sanções contra Moraes, que lidera o julgamento contra Bolsonaro.
As ações do governo americano têm sido articuladas em contato direto com o filho do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro, que se afastou de seu cargo de deputado federal no Brasil para coordenar essa campanha diretamente dos Estados Unidos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores - PT) classificou as ações de Washington como uma interferência “inadmissível” sobre “a decisão da Suprema Corte de um outro país” durante uma coletiva de imprensa na terça-feira.
Ao mesmo tempo, o STF reagiu abrindo um inquérito contra Eduardo Bolsonaro por obstrução e coação do processo contra o ex-presidente e por “tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito”. O inquérito partiu de uma acusação do deputado Lindbergh Farias do PT, que além desses crimes, caracterizou as atividades do filho de ex-presidente como “atentado à soberania nacional” e “alta traição à pátria”.
As ações promovidas pelo PT e as instituições da burguesia brasileira são fundamentalmente incapazes de combater a ascensão do fascismo e da agressão imperialista. Ao contrário, seus apelos a ideais nacionalistas reacionários e sua tentativa de solucionar todos os conflitos políticos no âmbito jurídico só aprofundam a guinada à direita de todo o sistema burguês.