Publicado originalmente em inglês em 19 de junho de 2025
Em 10 de junho, a Suprema Corte da Argentina manteve uma sentença de seis anos de prisão contra a ex-presidente peronista Cristina Fernández de Kirchner (CFK). Ela, junto com muitos outros réus, foi considerada culpada de fraude em 6 de dezembro de 2022, após um longo julgamento sobre contratos de construção de estradas concedidos ilegalmente por vários anos a uma empresa do multimilionário Lázaro Báez na Província de Santa Cruz. O tribunal também proibiu CFK de se candidatar a cargos públicos pelo resto de sua vida, após seu anúncio de planos de concorrer a um cargo legislativo na província de Buenos Aires.
Fernández foi considerada culpada de aceitar subornos e propinas em contratos de construção de estradas na província de Santa Cruz, entre 2003 e 2015, durante o único mandato de seu falecido marido, Néstor Kirchner, e nos dois mandatos de CFK. Néstor Kirchner faleceu em 2010, após uma longa carreira política em Santa Cruz e na presidência.
A Suprema Corte concedeu a CFK vários dias para entregar-se na sede do Tribunal Criminal Federal em Buenos Aires – o edifício em Comodoro Py – para o trâmite final do processo.
Em observações finais nesta audiência, Cristina Fernández descreveu o longo processo e a decisão do tribunal como “lawfare”, o abuso intencional do sistema legal para fins políticos. Mais do que lawfare, a ex-presidente declarou: “Isto é um pelotão de fuzilamento”.
O banimento político de Fernández, que permanece na prática a líder política da mais importante tendência política burguesa do país, o peronismo, representa uma escalada significativa na virada da classe dominante argentina e do governo do presidente fascista Javier Milei em direção à criminalização da oposição política e ao estabelecimento de uma ditadura de Estado policial. Milei defende abertamente os crimes da última ditadura militar.
Essa operação é dirigida em uníssono com o governo Trump, que já havia barrado CFK de entrar nos Estados Unidos em março, acusando-a de estar envolvida em “corrupção significativa”.
Já em setembro de 2022, um atirador brasileiro de extrema direita ligado a círculos da extrema direita conectados ao movimento de Milei tentou assassinar CFK.
O predecessor peronista de Milei, Alberto Fernández, e sua vice-presidente, CFK, supervisionaram um brutal regime de austeridade social ditado pelo Fundo Monetário Internacional, preparando o terreno para Milei vencer as eleições, apesar de Milei prometer uma “terapia de choque” econômica ainda mais agressiva. Como a nominal “oposição”, os legisladores, governadores e as burocracias sindicais peronistas têm dado votos para sua legislação e negociado alguns de seus ataques mais radicais às instituições sociais e aos direitos democráticos.
Enfrentando uma constante agitação de greves e protestos em massa que a burocracia sindical liderada pelos peronistas está percebendo ser cada vez mais difícil conter, a decisão da classe dominante de se voltar contra CFK não se deve ao fato de que vê o peronismo como uma ameaça ao seu ataque contra a classe trabalhadora, mas sim porque busca estabelecer um exemplo e criminalizar toda a oposição de baixo.
Na quarta-feira, 18 de junho, um tribunal federal em Buenos Aires aceitou o pedido de CFK para cumprir sua pena em prisão domiciliar, sob condições rigorosas; além de restrições sobre quem pode visitá-la, ainda não está claro se ela terá permissão para sair para a varanda de seu apartamento de US$ 300 mil em Buenos Aires. A lei argentina permite que condenados com mais de 70 anos de idade cumpram suas penas em casa.
O tribunal, entretanto, manteve sua proibição de se candidatar a cargos políticos.
Na manhã da sentença, milhares de pessoas começaram a se reunir na Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires, para protestar. Grupos organizados pela Frente de Esquerda e dos Trabalhadores - Unidade (FIT-U) marcharam a partir da Plaza do Obelisco e do centro de Buenos Aires. Protestos em massa também ocorreram na cidade industrial de Córdoba, no porto de Rosário e em outras grandes cidades.
Burocratas das federações sindicais CGT e CTA, apoiadores do movimento peronista La Cámpora (liderado pelo filho da ex-presidente, Máximo Kirchner), do Partido Justicialista de CFK e de outros grupos peronistas foram acompanhados por números significativos de trabalhadores e estudantes.
A condenação e a perda dos direitos políticos de CFK foram exploradas pelos longos defensores do peronismo nos partidos pseudoesquerdistas da classe média para apresentá-la como uma mártir política. Como o WSWS escreveu na época, a eleição de Milei provou que, “do ponto de vista dos trabalhadores, o aparato peronista é composto por uma multidão de funcionários corruptos e criminosos burocratas sindicais que conspiram para impor os ditames das grandes empresas e bancos”. Agora, os parceiros pseudoesquerdistas do peronismo estão usando todas as oportunidades possíveis para ajudar a reconstruir a credibilidade e o apoio a este partido burguês.
Francamente, esses esforços só podem ajudar a desarmar a classe trabalhadora politicamente na luta contra o fascismo e a ditadura, da mesma forma que essas mesmas tendências desarmaram os trabalhadores antes da brutal ditadura do Gen. Rafael Videla (1976-83).
Myriam Bregman, deputada federal pelo morenista Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), que lidera a FIT-U, fez várias declarações que oferecem apoio político incondicional a CFK. Falando a repórteres da mídia corporativa, ela disse:
Em uma democracia capitalista tão restritiva quanto a que vivemos, a Suprema Corte se arroga ainda mais direitos, o direito de decidir quem pode e não pode ser candidato. Acreditamos que devem haver mobilizações massivas em todo o país, que medidas de luta devem ser tomadas para que ninguém possa se distrair, pois isso vai além do caso imediato. Esta é uma mensagem política de um ataque antidemocrático, que, como todo ataque antidemocrático, como a história de nosso país nos mostrou, acaba sendo contra o povo.
As observações de CFK na audiência foram então endossadas em uma entrevista recente por Jorge Altamira, fundador do Partido Obrero pseudoesquerdista e líder de sua fração dissidente, a Política Obrera. Altamira rejeitou a decisão da justiça, descrevendo-o como uma armação política semelhante àquela contra o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que, em 2014, foi condenado por estar envolvido no escândalo da Odebrecht (Operação Lava Jato), facilitando a eleição do fascista Jair Bolsonaro.
Também entrevistado em um programa de rádio estava o líder do Partido Obrero, Gabriel Solano, que também pertence à FIT-U. Solano falou na mesma linha, aceitando que CFK era culpada de fraude, mas insistindo que “todo mundo comete fraudes” e que o ataque contra ela é político. “É evidente que este é um caso de perseguição política”, disse Solano. Ele então explicou que o PO não apoia Kirchner, citando a cumplicidade de membros do governo CFK no assassinato do membro do PO, Mariano Ferreyra, em 20 de outubro de 2010, durante uma manifestação de trabalhadores ferroviários temporários da rede ferroviária Roca [maior rede ferroviária da província de Buenos Aires], atacados por capangas do sindicato ferroviário, protegidos pela polícia. Ferreyra e outros dois foram baleados. Ferreyra faleceu no hospital.
A privatização parcial das linhas ferroviárias argentinas, que haviam sido nacionalizadas sob o primeiro regime peronista, ocorreu no governo de Néstor Kirchner com a colaboração do governo, sindicatos e empresas privadas. Isso permitiu a contratação de “temporários” com baixos salários em condições de feroz superexploração. O Sindicato Ferroviário, um parceiro pleno na ferrovia Roca que contratou os capangas que atacaram os trabalhadores em 20 de outubro de 2010, beneficiou-se disso.
A morte de Mariano Ferreyra desencadeou protestos em massa. Nove anos atrás, o filme ¿Quién Mató a Mariano Ferreira? (Quem matou Mariano Ferreyra?) expôs o crime e a cumplicidade dos Kirchner. Entre 1h06min até 1h10min do filme, o líder do Sindicato Ferroviário, Pedraza, organizador dos capangas sindicais, fala sobre seu relacionamento com o Ministério do Trabalho e com Néstor e Cristina Kirchner.
Solano declarou: “Temos ‘pendências’ com CFK … no entanto, defenderemos seu direito de se candidatar”.
Altamira e Solano insistem que a participação de sua tendência nessas marchas não significa apoio político a CFK ou ao peronismo. Isso é uma fraude: Se o ex-presidente de direita Macri ou o fascista Milei estivessem no lugar de Cristina, eles se conteriam de protestar em seus nomes. Esses movimentos promovem CFK como uma alternativa capitalista de menor risco para a classe trabalhadora.
Por trás da recusa criminosa da FIT-U em criar uma verdadeira alternativa da classe trabalhadora existe sua orientação de classe pequeno-burguesa hostil à classe trabalhadora, que explica sua pronta adaptação ao culto de personalidade das mais notáveis figuras inimigas da classe trabalhadora: Juan Domingo Perón, sua primeira esposa Evita, Carlos Menem, Néstor Kirchner e Cristina Fernández, fazendo tudo o que podem para afastar a classe trabalhadora argentina da revolução social e para os programas nacionalistas burgueses dos representantes peronistas e seu falso anti-imperialismo.
Não há dúvida de que os Kirchner participaram e lucraram com um esquema de corrupção envolvendo obras públicas junto a outros.
Na verdade, fraude e corrupção têm sido uma marca registrada dos governos capitalistas e são intrínsecas ao funcionamento do capitalismo, com funcionários governamentais tirando proveito de informações privilegiadas e conexões corporativas para enriquecer acionistas, CEOs corporativos e a si mesmos (como no infame escândalo da Enron de 2001). Essas práticas corruptas continuam hoje em dia em todo o mundo, seja sob Milei, que acabou com a agência que investigava sua participação em uma fraude envolvendo criptomoeda, ou os governos Netanyahu, Trump e de Pedro Sanchez da Espanha, todos atualmente envolvidos em crescentes escândalos de corrupção.
A ameaça de uma ditadura fascista – com o caso de CFK estabelecendo as bases para ataques muito mais amplos contra direitos democráticos – não pode ser subestimada, mas a luta contra ela só pode ser baseada em uma avaliação sóbria do papel desempenhado pelos peronistas e pela pseudoesquerda em desarmar qualquer resistência viável na classe trabalhadora, com base em um programa revolucionário, socialista e internacionalista.